O grande Karl Marx já afirmou que a religião é o ópio do povo. O excelente Engels, seu companheiro, recomendou que os socialistas alemães difundissem maciçamente a literatura ateia iluminista. Alexandra Kollontai, grande marxista-leninista, dizia em seus discursos que as mulheres deviam se libertar da escravidão religiosa. Todas as maiores autoridades da ideologia do proletariado chegam à mesma compreensão sobre o papel das religiões: servir às classes dominantes e, portanto, atrasar o desenvolvimento da humanidade por meio da difusão de preconceitos e temores mesquinhos. A luta contra as concepções religiosas é, segundo o grande Lenin, o á-bê-cê de todo materialismo e, por conseguinte, do marxismo, sem, no entanto, interferir no direito à consciência religiosa das massas. Mas o marxismo não se detém no á-bê-cê, ele vai além.
O marxismo é uma ideologia que carrega uma fé diferente de todas as outras. Uma fé científica e revolucionária, embasada no eterno e indestrutível movimento da matéria e da história, que está em combate contra todo tipo de fé supersticiosa e também contra a ausência de fé propagada pelas filosofias niilistas. Afinal, todas as revoluções sociais da história foram feitas por massas de homens e mulheres destemidos e movidos pela fé revolucionária de seu tempo. Mesmo as frações mais ateístas da burguesia iluminista tinham a sua fé: a fé na forja de um mundo dominado pela razão, pela ciência e pelos mitos da consigna de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A filosofia iluminista negava a fé decadente daquele velho mundo feudal, em que todos os assuntos da vida eram assuntos da Igreja, de Deus e do Papa. Afirmava, porém, a fé na libertação da humanidade dos grilhões medievais. No lugar dos privilégios, o sufrágio; no lugar de Deus, os homens. Era uma batalha messiânica levada a cabo por homens ateus. Nenhuma velha ideia poderia escapar ao tribunal da razão. A confiança sublime da burguesia e a derrota espiritual da nobreza tinham raízes materiais: a história estava a favor da burguesia uma vez que a antiga economia feudal já não era capaz de se sustentar diante o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas.
Só que agora, passados mais de dois séculos da Revolução Francesa e cerca de um século e meio do surgimento do imperialismo, a burguesia já não é mais vanguarda da humanidade, mas justamente a parte reacionária que quer emperrar as rodas da história.
A burguesia viu ruir diante de si tudo que acreditou e proclamou. Suas forças produtivas são destruídas em crises cíclicas, sua “liberdade para todos” virou a liberdade dos monopólios, sua fraternidade não impediu as guerras imperialistas e a sua igualdade virou conversa fiada. Sua democracia, conquistada com o sangue liberal das revoluções iluministas, deu lugar ao fascismo e à reacionarização.
A burguesia está derrotada espiritualmente. Está, nas palavras de José Carlos Mariátegui (fundador do Partido Comunista do Peru): incrédula, cética e niilista. É uma classe que já não é capaz de olhar o futuro com otimismo, pois os ventos da história deixaram de soprar a seu favor e seus mitos da Revolução Francesa foram soterrados pelas próprias contradições do seu sistema. Em síntese, perdeu a fé, já não enxerga o horizonte.
A filosofia burguesa, antes interessada no progresso e no conhecimento científico, agora está interessada em esfumaçar e diluir a realidade. A filosofia burguesa desaguou no mais grosseiro idealismo subjetivista. A razão é simples: antes, a burguesia precisava fazer revolução; agora, precisa impedir que o proletariado faça a sua. Descartes, Hume, Locke, e mesmo Kant e Hegel fizeram parte dessa geração de filósofos da burguesia no momento histórico em que ela ainda cumpria um papel progressista e, portanto, de alguma forma, buscava conhecer o mundo objetivo, ainda que limitados pela perspectiva de classe que tinham. Filósofos que, inclusive, serviram de fonte para o desenvolvimento do materialismo dialético, que superou toda antiga tradição filosófica.
Já Nietzsche, Heidegger, Derrida, Sartre e Foucault fazem parte de outra geração: a geração da antifilosofia pós-moderna do niilismo, do existencialismo e do pós-estruturalismo, que substitui a verdade tangível pelas narrativas subjetivas da linguagem. Não interessa mais à burguesia qualquer análise minimamente concreta da realidade material, uma vez que isso trataria justamente de revelar a necessidade histórica da própria superação da burguesia. Hoje, cabe divagar sobre perspectivismo, pós-verdade, negatividade estrutural do ser¹ e outros debates tão caros aos filósofos e antropólogos pós-modernistas. E, claro, geralmente em uma linguagem quase autística de tão fechada em si mesma e voltada à emulação mental individualista. Ao conceber a realidade através de infindáveis perspectivas e narrativas subjetivas, essa antifilosofia nega a própria história enquanto ciência.
O motor da história é a luta de classes, é o lugar do conflito de interesses materiais e ideológicos entre classes antagônicas, onde vencem aquelas cujas forças materiais e espirituais são mais avançadas e poderosas. Por acaso teria a burguesia derrotado a nobreza se considerasse suas ideias apenas como uma perspectiva ou narrativa a ser considerada? Não, as coisas estavam bem claras, era uma luta entre o progresso e o atraso. Da mesma maneira, consideramos decadente e obscurantista a antifilosofia pós-moderna, que pretende dissolver qualquer propósito maior para a existência humana. Afinal, propósitos definiriam o ser e, como afirmam os existencialistas, o ser é nada. Quando a CIA financiou durante a “Guerra Fria” escritores do existencialismo como André Malraux e Albert Camus², ela derrubou toda a especulação pós-moderna num só golpe, provando na prática que existem apenas duas verdades e duas perspectivas: a verdade e a perspectiva da contrarrevolução e a verdade e a perspectiva da revolução. Ironicamente, a verdade da contrarrevolução é a própria negação da verdade e a sua perspectiva é a ausência de qualquer perspectiva.
A ascensão do tipo existencialista e niilista no seio da intelectualidade pequeno-burguesa é resultado direto do abalo que os mitos iluministas, progressistas e republicanos sofreram com a miséria moral e material imposta pela época do imperialismo. Época esta que, segundo Lenin, é reação em toda linha; é o apodrecimento da velha ordem rumo ao fascismo.
A guerra imperialista e o fascismo primeiro apareceram como novidade, uma comoção feroz que poderia reacender as chamas dos corações burgueses entediados com o ideal racionalista fatigado da Bela Época, um resgate dos tempos em que a burguesia carregava alguma adrenalina transformadora nas suas veias. Depois, a guerra e o fascismo se revelaram como tragédia, foram responsáveis por demolir de vez o castelo da razão e do progresso. A necessidade de conter o avanço do proletariado e de fazer a repartilha do mundo em busca do lucro máximo fez a burguesia rasgar todos os seus ritos liberais e constitucionais, os horrores da besta nazifascista e das guerras de rapina derrubaram por terra as crença nas formalidades contratualistas, na divisão dos poderes e na democracia burguesa em geral. Os jacobinos do século XVIII estariam envergonhados, tal como está hoje a grande burguesia. Se os tempos do desenvolvimento relativamente pacífico do capitalismo já foram suficientemente capazes de desgastar a fé da burguesia em seus mitos, a guerra tratou de dissolver o que restava deles.
Não é de se estranhar que a literatura pós-moderna seja recheada de sentimentos como angústia, apatia e temáticas suicidas. É sintoma de que a burguesia caducou espiritualmente. O homem burguês do pré-guerra estava letárgico, pois suas crenças já não eram épicas ou heroicas; o homem burguês do pós-guerra está desolado, pois já não lhe resta crença alguma. Resta-lhe, quem sabe, contemplar os acontecimentos envolto em sua atmosfera blasé e impotente, como um personagem de Albert Camus. Infeliz é aquele que padece de heróis e propósitos.
De um lado, o marxismo é atacado pela antifilosofia burguesa pós-moderna como um mero retorno ao fatalismo, que quer acorrentar o indivíduo aos dogmas da predestinação ideológica. Do outro, é atacado pelos vestígios carcomidos daquele racionalismo liberal morno, que pretende que a ideologia do proletariado não passa de uma histeria anticientífica. A origem de classe desses dois campos os impede tanto de ter fé quanto de fazer ciência.
O proletariado é a última classe da história, a classe que tudo produz e não detém qualquer propriedade. Depois da vitória definitiva do proletariado, não surge outra classe para ser dominada e explorada. Sua ideologia não se corrompe justamente porque ela leva ao comunismo, significa a abolição de vez da divisão da sociedade em classes antagônicas. É a derradeira batalha messiânica da humanidade, que trará aquilo que a burguesia prometeu e não foi capaz de cumprir.
Esfumaçar a realidade, torná-la turva e confusa não é uma necessidade do proletariado nem agora e nem no futuro, porque ele não precisa enganar a ninguém e tampouco a si mesmo. Para atingir seu objetivo, o proletariado mantém uma fé inabalável no horizonte, que é, precisamente, seu combustível para resolver os problemas científicos do presente.
A fé da ideologia proletária em forjar um novo mundo, ao contrário de toda fé supersticiosa, é uma fé científica, calcada nas tendências históricas que a classe dominante da nossa época quer camuflar. Os mitos da revolução proletária estão a plenos pulmões, sua certeza absoluta avança sobre uma burguesia estérea e dúbia. O futuro nos pertence. A burguesia não tem mais fé porque o futuro promete a sua morte e não é mais científica porque, se fosse, chegaria à conclusão de que já não existe mais propósito para a sua existência.
Na economia política, vemos a queda tendencial da taxa de lucro ao longos dos anos e as crises cíclicas de superprodução, que ocorrem necessariamente a cada tantos anos abalando o imperialismo. Na história recente, assistimos ao crescimento das guerras populares nas semicolônias, aos levantamentos operários em todas as partes e à reacionarização da velha ordem para conjurar a segunda grande onda da revolução proletária mundial.
A burguesia, assustada, quer fazer crer que a perda de sentido histórico e cósmico para a existência da sua classe significa a perda de sentido para a humanidade em geral. Quer arrastar todos para a sua cova. Por isso, deve ser dito em bom tom que, na nossa época, apenas o proletariado está apto a fazer ciência e apenas ele está apto a ter uma fé e uma filosofia verdadeiras.
Nietzsche, ainda no século XIX, pretendeu matar os ídolos da humanidade com sua filosofia do martelo³. Faltou a ele perceber que esses ídolos já estavam mortos. Eles não eram os ídolos da humanidade, mas, sim, os ídolos da sociedade burguesa. A esmagadora maioria da humanidade é proletária e, portanto, toda tentativa de destruir o espírito humano é vã precisamente porque o proletariado é uma classe indestrutível. Da mesma forma que a burguesia não pode superar as crises cíclicas e estruturais do capitalismo, ela também não pode superar sua crise ideológica. A decadência espiritual dessa época não pode ser superada sob os marcos de um sistema exploratório, tomado pelas guerras de rapina e pela miséria. A solução definitiva só pode ser dada pelo proletariado revolucionário.
Seja como for, a história se repetirá. A guerra, o fascismo e a revolução pegarão novamente a pequena-burguesia de surpresa. Aos mais alheios à vida real, acostumados com a rotina dos museus de arte moderna, vinhos e literatura pós-moderna, tudo será tragédia. Para outros, que decidirem estar ao lado do fascismo com a pretensão de atribuir à própria existência burguesa alguma emoção heroica, restará a farsa. Aos que se desvencilharem de sua origem de classe e tomarem parte da revolução, restará o futuro. Este sim, verdadeiramente grandioso.
Para o proletariado, acostumado com a guerra cotidiana de garantir a própria subsistência, tudo sempre esteve esclarecido. Os tempos são sombrios, mas como afirmou o grande Karl Marx, a humanidade não cria problemas que não possa resolver. As dores do velho mundo são necessárias, são as dores de um parto. Significam que essa velha sociedade está prenhe de uma nova. O eterno movimento e a eterna destruição-criação é a essência da vida, tal como está exposto no célebre A Miséria da Filosofia. Nisso reside a contradição do fenômeno: a decadência espiritual da época do imperialismo é algo negativo, que ameaça pôr em cheque a saúde da humanidade. Porém, anuncia que uma nova época está para nascer e, por isso, o aspecto principal é positivo.
O revolucionário, nutrido dessa verdade filosófica, rejeita toda filosofia decadente e pessimista. Seu espírito é inabalável. A história está ao seu lado justamente porque ele está do lado certo da história: o lado que destruirá esse velho mundo e criará um novo. No futuro, diferentes problemas no comunismo também farão perecer determinados fenômenos que darão lugar a formas mais avançadas, a batalha entre o novo e o velho é infinita, é a batalha que rege toda a matéria. No presente, temos a tarefa de garantir que a humanidade possa travar essa batalha em um patamar superior, além dos limites impostos pela velha ordem burguesa.
Notas
¹ Perspectivismo: doutrina filosófica subjetivista embasada na concepção nietzscheana de que “não há fatos, apenas interpretações”; pós-verdade: termo utilizado entre filósofos pós-modernos para se referir à velha e conhecida distorção utilizada na propaganda dos monopólios de comunicação, afirmando que não existem mais verdades, apenas narrativas; negatividade estrutural do ser: concepção desenvolvida por Heidegger de que o ser humano é indeterminado, despossuído de propósito existencial e de que nisso reside a sua negatividade estrutural.
² Fato exposto no livro “Quem Pagou a Conta?”, da historiadora britânica Frances Stonor.
³ Pensamento desenvolvido por Nietzsche em sua penúltima obra, Crepúsculo dos ídolos, em que ele defende que o indivíduo deve declarar guerra aos mitos, crenças e ídolos de toda filosofia, ciência e religião.