Editorial semanal – Política de sangue
Moradores do Complexo do Salgueiro se mobilizam para retirar corpos no dia 21 de novembro. Foto: Agência O Globo
Temos dito, em nossos recentes editoriais, que a antecipação da corrida eleitoral de 2022 assinala apenas a divisão das classes dominantes, de um lado, e a tentativa de produzir alguma adesão social a um processo farsante e largamente desacreditado, de outro. Em todo caso, para compreender o caráter de uma dada sociedade, não basta observar o movimento das personagens ilustres no alto dos palanques ou diante dos holofotes. É preciso olhar as engrenagens que se movem no mais profundo do tecido social, onde se encontrará o segredo oculto sobre o qual se ergue o edifício todo.
Enquanto estas linhas são escritas, moradores do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, se mobilizam para retirar de uma área de mata corpos de jovens chacinados pela Polícia Militar. Pelo menos 20 pessoas teriam sido executadas em uma operação realizada no domingo, 21/11. Parentes das vítimas denunciam tortura e mutilação, enquanto cinicamente o porta-voz da PM fala de troca de tiros a grande distância. São Gonçalo, segunda maior cidade do estado, com 1 milhão de habitantes, já responde pelo maior número de mortes por intervenção policial no Rio. Antigo centro industrial, converteu-se, como tantos outros lugares semelhantes, ao mesmo tempo em refúgio e campo de concentração para milhares de pessoas desempregadas, que vivem com base em empregos precários e auxílios governamentais, sob o acosso e violência implacáveis das forças policiais e outros grupos paramilitares – “milícias” ou facções – que lhes servem como força auxiliar. O mesmo Complexo do Salgueiro foi palco de uma chacina perpetrada em conjunto pela Polícia Civil e pelo Exército, em novembro de 2017, que resultou em oito execuções, e também do assassinato brutal do menino João Pedro, 14 anos, dentro de casa, em maio do ano passado, em plena pandemia. No primeiro caso, a investigação, que correu na Justiça Militar, foi arquivada, e no segundo o inquérito ainda não foi concluído.
A propósito, há um mês, oito militares do Exército reacionário foram condenados pelas mortes do músico Evaldo dos Santos Rosa e do catador de materiais recicláveis Luciano Macedo. Na famigerada “operação”, ocorrida em abril de 2019, os militares dispararam 257 tiros contra o carro em que Evaldo estava. Mas, mesmo esta condenação por um crime flagrante se deu por 3 votos a 2 no âmbito da Justiça Militar (foi Michel Temer que sancionou, em outubro de 2016, a espúria lei que transfere para o âmbito da Justiça Militar a investigação e o julgamento de homicídios cometidos por militares no contexto de ações de “segurança pública”). O voto de Minerva, a favor da condenação, foi dado pela única juíza civil que compunha o conselho de sentença. Ainda cabe recurso.
Num país lacerado pela fome, pelo desemprego e pela falta absoluta de perspectivas para a imensa maioria de sua população, sobretudo os mais jovens, esta política genocida é, talvez, a única política de Estado aplicada de modo racional e continuado por todos os governos. Pois sim, durante os anos dos governos petistas, não só a população carcerária dobrou – passou de 300 mil presos em 2005 para 600 mil em 2015, e hoje já atingiu os 800 mil encarcerados –, não só houve a banalização do emprego das Forças Armadas em favelas e no campo sob os auspícios de “Garantia da Lei e da Ordem”, como por uma década o mesmo padrão de extermínio e violações foi aplicado na repressão ao povo haitiano. Sob Michel Temer e Bolsonaro, o padrão se manteve, como uma espécie de inércia assassina. E isto não ocorre sem a participação do Ministério Público e do judiciário, oligárquicos, reacionários e antipovo até a medula, céleres em condenar pobres por crimes contra a propriedade ou a “ordem pública”, mas deliberadamente cegos para investigar e julgar os agentes de repressão pelos covardes crimes de sangue que cometem. Para as massas mais pobres, estas que se amontoam nos gigantescos bolsões de miséria urbana ou vivem penúrias sob o tacão do latifúndio no interior imenso deste país, nunca houve anistia.
Pretender mudar esta situação através da mobilização das mesmas instituições que a instalaram e mantém é mais do que um contrassenso lógico: é uma impossibilidade histórica e uma traição desavergonhada às massas populares. No futuro, os reformistas pequeno-burgueses serão tão ridicularizados como os que pretendiam, há um século e meio, apenas amenizar o instituto da escravidão ou da monarquia. É preciso destruir todo o velho aparato estatal, reduzi-lo a ruínas, sem o que nenhuma transformação séria ocorrerá, por mais radicalizados, grandiloquentes ou performáticos discursos que se façam. Porque é claro que a máquina genocida, que hoje se volta sobretudo para o controle social da pobreza, se prestará para a ação de polícia política quando a luta de classes se aprofunde e faça marchar mais rápido o poderoso movimento revolucionário. Não ver as coisas desta forma, não preparar-se para isso, não apontar a consciência dos trabalhadores neste sentido, é não ver e não preparar-se para nada. Força contra força: eis a única divisa justa.