SEBASTIÃO ILARI
18 DEZEMBRO 2021
José Praxedes: o sapateiro comunista que passou 49 anos na clandestinidade
Comunista
até o fim da vida, José Praxedes morreu defendendo o Levante Popular de 35.
Foto: Reprodução
“De qualquer forma, a experiência de
1935 deixou um ensinamento importante: quanto mais glórias se produz, mais
glórias se colhe. A Insurreição de 1935 mostrou, também, que quando o povo se
revolta e pega em armas contra um regime de arbítrio ele pode sair vitorioso.
Essa foi a sua grande lição.” José Praxedes
José Praxedes nasceu em Natal no ano de 1900 no dia 6
de abril e aos 12 anos de idade já estava profundamente envolvido com a
política apoiando por iniciativa própria a candidatura de Leônidas da Fonseca.
Praxedes acreditava que este teria poder de acabar com as oligarquias (as quais
já tinha antipatia desde pequeno). Mas as ilusões de mudar as coisas com o voto
duraram pouco.
Quando presenciou a prisão do capitão potiguar José da
Penha após levantar o povo contra Alberto Maranhão e Ferreira Chaves, cujo
grupo político representante dos latifundiários potiguares estava no poder há
mais de 20 anos, José Praxedes soltou a frase: “O meu coração tem a dureza
daquelas pedras. E com este rochedo de carne, hei de esmagar a oligarquia
dominante”.
Após um breve período trabalhando apenas na igreja,
José Praxedes entrou para o Liceu Industrial, aos 16 anos de idade. Em 1917
fica sabendo através de alguns jornais da época sobre a grande revolução de
Outubro e de pronto passa a defendê-la e apoiá-la com unhas e dentes, mesmo sem
compreender muito bem devido a carência de materiais à respeito no Brasil. De
todo modo, Praxedes se torna um defensor da revolução proletária, como afirma
em depoimento:
“Eu já tinha aquela coisa do Poty e do Frei Miguelin,
herói da Revolução de 1817, a Confederação do Equador na cabeça e quando
comecei a ler sobre a Revolução Russa fiquei ainda mais animado. Consegui
entender o que estava acontecendo por lá e, então, passei a pregar entre os
colegas da escola a defesa da Revolução Russa, a necessidade dos operários se
organizarem também aqui no Brasil para conquistar o poder. Foi uma coisa
espontânea, que surgiu naturalmente dentro de mim. Ninguém me falou nada, não
me ensinaram nada. Apenas lia as notícias nos jornais e ficava entusiasmado.
Era como se o índio Poty estivesse no meio daquele movimento.”
Mesmo diante da difamação feita pelos jornais
brasileiros falando em "anarquistas que usurparam o poder na Russia”, José
era enfático ao dizer que os operários apenas "tinham tomado o que era
deles mesmos". Naquela época nem sequer tinha sido fundado o Partido
Comunista do Brasil (P.C.B.), e Praxedes, cuja única leitura até então tinha
sido a Bíblia, já acreditava que era possível que os trabalhadores brasileiros
assaltassem os céus como fizeram na Rússia. Quando se formou no Liceu, arrumou
emprego em uma fábrica e logo tratou de começar sua militância.
A UNIÃO DOS
SAPATEIROS DE NATAL E A APROXIMAÇÃO COM O PARTIDO
Em 1921 José Praxedes é convidado pelo também
sapateiro Raimundo Moreira a reorganizar União dos Sapateiros de Natal. A
entidade havia sido desmantelada pelos pelegos os quais José sempre combateu em
sua militância sindical. Juntos, Praxedes e Moreira reorganizam a União e logo
ganham a simpatia dos trabalhadores da capital potiguar, montando inclusive o
que seria à primeira organização comunista do Rio Grande do Norte. Se tratava
de um grupo de operários simpáticos à revolução Russa que reuniam esforços para
compreender e pôr em prática uma ideologia que não tinha sequer um livro
completo traduzido que chegasse às suas mãos. Assim era fundado o chamado Grupo
Maximalista, a primeira célula comunista de Natal.
A militância no Nordeste brasileiro vivia em um
isolamento tão grande que os comunistas potiguares sequer tinham noção de que
haviam organizações como Grupo Comunista do Rio ou o Grupo Comunista de São
Paulo que viriam a participar do congresso de 25 de Março de 1922 que deu
origem ao Partido Comunista do Brasil (P.C.B.), com o qual só travariam contato
e se integrariam alguns anos mais tarde. A primeira vez que tomam conhecimento
da existência do P.C.B. é quando o sargento da Marinha José Alves chegado do
Rio de Janeiro procura a Liga Operária de Natal para fazer uma reunião e distribui
o folheto “Quem é Lênin". Na mesma época, o jornal A Nação (órgão oficial
do Partido Comunista do Brasil) chega às bancas de Natal. Sobre este periódico,
José Praxedes relata:
“Esse jornal deu um impulso tremendo à nossa luta. Eu
comprava quatro, cinco, seis exemplares, de acordo com o dinheiro disponível e
os distribuía para o pessoal. Aos poucos fomos organizando a compra e a leitura
do jornal e isso ajudou bastante a nossa compreensão dos problemas políticos da
época”.
Mas o contato definitivo com o Partido só ocorreria em
1926, quando em meio a luta dura contra os pelegos de Café Filho no movimento
operário potiguar, o Grupo Maximalista decide enviar um militante, o sapateiro
Arthur da Silva, para o I Congresso das Classes Trabalhadoras, que seria
realizado no Rio de Janeiro. Durante o Congresso o sapateiro toma contato com o
Partido e faz um relato das atividades da União dos Sapateiros de Natal que é
encaminhado para Cristiano Cordeiro, um dos fundadores do P.C.B. e secretário
geral à época. Cristiano decide enviar um militante para organizar os operários
em Natal e enfim integrá-los ao Partido:
“Quem veio a Natal foi o companheiro Lourenço Justino,
de Recife. No final de novembro ele faz uma reunião, expôs a linha do partido, falou sobre a necessidade de nos
organizarmos nas empresas fundamentais, do trabalho no campo entre os
camponeses, nas salinas de Macau, Mossoró e Areia Branca, nos carnaubais, essas
coisas todas. Dessa reunião participaram seis
pessoas: eu, Pedro Marinho, Arthur da Silva, Aristides, José Pereira e o José
Claudino, o dono da casa. Todos eram sapateiros. Ali fomos oficialmente
admitidos no Partido Comunista do Brasil e planejamos as próximas tarefas. Com
o tempo, o partido foi crescendo, incorporando gente das docas, da estiva, da
Estrada de Ferro. Tomou vulto. Passamos a receber a Classe Operária e a
divulgá-la” (grifos nossos).
Em 1929, Praxedes vai como delegado do Rio Grande do
Norte à I Conferência Nacional do Partido Comunista do Brasil, onde foi criado
o primeiro Secretariado do Extremo Norte e Nordeste, quando volta para o RN se
abre a mais encarniçada luta entre os pelegos ligados à Café Filho e os
comunistas potiguares, à época já bem fortes. Essa luta de duas linhas
culminaria na dissolução Federação dos Trabalhadores do Rio Grande do Norte,
transformando o Partido na única organização dos trabalhadores potiguares.
“Desmoronou tudo, debandou tudo. Mas ficou o Partido”, nas palavras de
Praxedes.
A “REVOLUÇÃO”
DE 30 E O MANIFESTO CONTRA CAFÉ FILHO
Quando estoura o golpe de 30 o governador do RN
Juvenal Lamartine foge e rapidamente é cotado para o governo do estado João
Café Filho, o Partido em Natal acompanha de perto essa movimentação e
rapidamente se encarregam de escrever um volante contra Café Filho e a
“Revolução”.
“Na nossa análise, aquele movimento não iria adiantar
nada. Apenas serviria para colocar no poder gente que também era inimiga do
povo (...). O volante dizia que tinha acabado de se consumar mais um ato cujo
objetivo era manter a situação de miséria dos trabalhadores. Mostramos que os
trabalhadores não iam ser beneficiados com aquele movimento e desmascaramos
João Café como um oportunista que só queria subir ao poder. No dia seguinte nós
distribuímos o volante e surtiu um efeito danado. O João Café ficou queimado
com a gente”, conta Praxedes.
No final das contas João Café ficou com o cargo de
chefe de polícia e logo assumiu para si a tarefa de acabar com os comunistas no
estado. Seu primeiro ato após empossado foi mandar prender José Praxedes, que
acabaria preso enquanto se aproximava de sua casa, voltando de uma reunião do
Partido. Praxedes foi arrastado pela polícia gritando que Café era um falso, um
traidor, e dando vivas ao Partido.
José é encarcerado, interrogado e não dá nenhuma
informação sobre a atuação do P.C.B. Tempos depois, é recebido de volta com
comemorações por parte dos seus camaradas. Continuou na militância, dirigiu os
comunistas que se alistaram para as frentes de trabalho que construíram a
estrada de Natal a Macaíba na tarefa de mobilizar os trabalhadores.
Foi detido novamente durante a marcha da fome em Natal
no mesmo ano mas logo foi liberado. Sua próxima prisão ocorreria apenas em 1932
também por ordem de Café Filho durante uma atividade de agitação e propaganda
no centro de Natal, mas dessa vez é diferente. Café o chama para conversar
pessoalmente e pede uma “trégua” para “vencer os problemas em São Paulo”
(falava a respeito da revolução constitucionalista), eles discutem e, ao ver
que não iria conseguir nada, manda soltar o líder comunista novamente.
No Rio Grande do Norte mesmo na mais dura
clandestinidade o Partido já era forte com células organizadas nas principais
fábricas e empresários, além das células no interior, a principal delas em Mossoró
que já contava com os guerrilheiros de Manoel Torquato. Por conta do
trabalho desenvolvido pelo P.C.B., era comum ser desatada sempre uma
perseguição enorme por parte da polícia comandada por Café. José Praxedes vivia
então um verdadeiro entra e sai da cadeia. Apenas seis dias depois da proposta
recusada de "trégua", já havia outro mandato de prisão para José
desta vez com mais rigor.
“Um belo dia a polícia cerca toda a minha casa, pela
frente e pelos fundos. A casa tinha um quintal grande que dava para outra rua.
Eles cercaram tudo. Quem comandou a operação foi um tal de João, de Mossoró, que
era homem de confiança de Café. Esse sujeito bateu na porta, pediu licença e
entrou. Logo foi vendo uns jornais que estavam espalhados pela sala (eu sempre
gostei de ler jornais), botou debaixo do braço e disse: ‘Dá licença. Nós vamos
dar uma busca’. No meio deles tinha policiais de Pernambuco, gente com
experiência em lidar com presos políticos. Eles traziam inclusive um
flash-light [Nota da Redação: lanterna elétrica] para iluminar o quintal. Entre
a minha casa e a do vizinho tinha um beco, onde eu havia escondido o reco-reco,
utilizado para impressão dos materiais do Partido. O sujeito que estava com a
luz foi vasculhando o quintal e achou o reco-reco. Quando ele o pegou, não sei
onde eu fui achar tanta coragem assim e o tomei das suas mãos, empurrando o
sujeito no chão. Ele caiu em cima de umas madeiras que estavam jogadas no
quintal. Aí todos os policiais partiram para cima de mim e foi uma confusão
danada. Rolamos pelo chão e eu acabei sentado de costas dentro de uma bacia. Aí
um safado me bateu na cabeça com o cano de um 38, abrindo um corte fundo que
sangrou muito. Me levaram preso pela rua, todo ensanguentado. Foi um escândalo
danado. A rua ficou cheia de gente olhando. Me colocaram num carro, e dessa
vez, me levaram direto para a Casa de Detenção. Dentro do carro estava um
sujeito que conversava comigo na fábrica de calçados. Quando entrei, falei pra
ele: ‘Rapaz, você por aqui? Pra onde nós vamos?’ Ele disse que não sabia. E eu
comecei a esculhambar com Café e ele só dizendo: ‘Tenha calma.’”.
José Praxedes prossegue:
“Na detenção me deixaram dormir sem fazer nenhum
curativo no ferimento. No outro dia de manhãzinha veio um médico me examinar e
um enfermeiro fez um curativo com iodo no ferimento. Lá pelas onze horas da
manhã, mais ou menos, sem que eu esperasse, abrem o xadrez e entra o meu
padrinho, aquele que me criou. Ele veio me visitar. Perguntou o que tinha
havido e eu contei tudo, sempre dizendo que tinha sido o João Café que mandou
me prender. Depois que ele saiu entrou um tira e disse que precisava de uma
autorização minha para mandar apanhar umas roupas lá em casa. Ele perguntou
onde era a casa e eu respondi: ‘Ué, vocês não sabem? Não foram me buscar lá?’
Ele insistiu dizendo que eu precisava autorizar. Então, disse que estava tudo
bem. Podia ir até lá e apanhar as roupas com a minha mulher. Ela já sabia o que
fazer. Quando eles voltaram com a mala, me puseram num carro e fomos para o
cais da Ribeira, na avenida Tavares de Lira. O tempo todo eu ia perguntando
para onde iriam me levar e eles não falavam nada. Quando descemos no cais, lá
estava a Polícia Marítima para me receber e aí eu pensei: ‘Bom já sei pra onde
vou. Vou embarcar’ ”.
José embarca e às 6 horas da manhã o navio atraca no
Recife. Praxedes é interrogado pela polícia política do Recife, que à época era
conhecida pelos comunistas por ser a mais cruel e mais violenta de todo o
Brasil. Queriam saber sobre um camarada que havia voltado de Moscou e estava
pelo nordeste. José nada revela aos seus algozes, fica o dia todo no xadrez da polícia
marítima sem comer nada e ferido. Quando é colocado de volta no navio, Praxedes
protesta contra Café Filho e as más condições em que se encontrava. Logo o
comandante do navio lhe traz alguma alimentação e ele pode, então, travar
contato com o pessoal de bordo. Para sua surpresa, também eram do Partido e lhe
deram todo apoio e solidariedade, faz verdadeiros discursos contra Café para a
tripulação e desperta a curiosidade dos passageiros que também se solidarizam
com sua situação.
Os militantes comunistas à bordo ajudam Praxedes à
fugir quando o navio para na costa do Rio de Janeiro:
“O nosso pessoal me procurou e montou uma estratégia
comigo. Eles disseram que ninguém sabia o que iria acontecer caso a polícia do
Rio me pegasse e que, então, o melhor era eu tentar fugir. Disseram para eu me
vestir de marujo e ficar escondido no alojamento. Quando a polícia entrasse
para me procurar, não me encontraria e, depois que eles saíssem, eu cairia
fora. Dito e feito. Me escondi no alojamento dos marujos, a polícia entrou, fez
a visita e, como não me encontrou, foi embora. Esperamos um pouco e depois, eu
desci junto com uns três marujos que iam para terra. Quando passamos do portão
do porto eu fui embora, atrás do endereço que haviam me dado”.
Os camaradas haviam lhe dado um endereço para caso
conseguisse fugir. Praxedes logo faz contato, recebendo ajuda do Socorro
Vermelho até conseguir um emprego em uma fábrica no Rio de Janeiro. José
Praxedes vai militar no Rio por um ano até ser designado para um curso de formação
política em São Paulo.
“No dia 28 de junho de 1933, às 7 horas da noite, eu
embarco de trem para São Paulo, chegando na Estação do Braz no dia seguinte de
manhã. Lá estava um camarada me esperando. Havia uma senha. O sujeito deveria
estar cheirando um dente de alho e tinha com ele metade de um papel onde estava
escrito: Praxedes, curso. A outra metade eu levava comigo. Eu deveria me
aproximar desse sujeito e mostrar o papel. Feito o contato e verificada a
senha, fui levado para os fundos de uma oficina de um judeu, na Avenida Rangel
Pestana. Fazia um frio com o qual eu não estava acostumado. Dormi nessa oficina
e no dia seguinte de manhã chega um paraguaio e me leva para a Casa Verde, onde
o Partido tinha um aparelho. Era uma casa em reboco e lá estavam umas dez
pessoas. Havia comida como o diabo e a gente fez uma escala de cozinha. Cada
dia um de nós era o responsável pela comida. Me lembrou bem que no dia que eu
cheguei era dia de São Pedro, dia 29 de junho, e durante a noite toda a gente
ouvia o barulho dos foguetes. Ficamos nessa casa uns três dias, quando veio um
carro e nos levou para a escola do Partido que ficava no bairro do Butantã. O
curso durou seis meses. Nós passamos um mês e meio nessa casa e depois tivemos
que mudar de local porque a polícia estava em cima. As aulas eram dadas
pelo Harry Berger, por um
tal de Lino, que era secretário do Comitê Estadual de São Paulo, por um tecelão
chamado Mauro e pelo Rodolfo Ghioldi [argentino]. O curso foi muito bom para
mim. Até aquele momento eu sabia muito pouco da teoria marxista-leninista. Tudo
o que eu fazia era guiado pela prática, pela vida. Só lia o jornal do partido A
Nação, mais nada. Depois do curso eu obtive uma formação teórica mais sólida
para me ajudar na luta”, conta Praxedes.
O LEVANTE
POPULAR DE 1935 E A CLANDESTINIDADE
Após o curso, retorna ao Rio de Janeiro onde fica até
1935, sendo mandado pelo Partido de volta à Natal já sabendo dos planos para o
Levante. Praxedes retorna a Natal e é eleito secretário político da nova
direção estadual, participa da grande greve em Natal que começa inicialmente
apenas entre os taxistas e logo se expande para os mais diversos setores.
Novamente Café Filho (agora deputado) tenta apaziguar a situação e é mais uma
vez rechaçado pelos trabalhadores obrigado a fugir pelos fundos do quintal da
casa onde se reunia com os representantes da greve, dentre eles seu velho
inimigo Praxedes.
Após a Greve, José retorna ao Rio de Janeiro onde se
reúne com alguns membros do Comitê Central:
“Nessa conversa” – conta Praxedes – “fiz um relato
detalhado de todo o movimento grevista em Natal e recebi orientações sobre os
preparativos que o Partido estava fazendo para um movimento armado contra o
Governo. Fui informado nesse contato que a ANL estava preparando um movimento
armado, mas não recebi nenhuma orientação mais concreta. Não havia ainda um
plano detalhado. A ordem era apenas preparar as massas para a revolução. Não
ficamos de braços cruzados como fizemos em 1931 e 32 quando o Partido foi
criticado pela Internacional Comunista, sobretudo o Comitê Regional de São
Paulo, por ter pregado a paz durante a Revolução Constitucionalista (...).
Nessa época nós já estávamos nos preparando para a luta, montando arsenais,
fabricando explosivos. Quando voltei do Rio trouxe algumas armas comigo. Dois
rifles e umas armas miúdas, como pistola e revólveres”.
O Rio Grande do Norte vivia uma grande efervescência
política. O Partido organizava o povo em mobilizações combativas e preparava
aos poucos a insurreição.
“Nessa época o Partido estava organizado em todas as
fábricas, na de sabão, na de cigarros, na de tecidos, nas prensas de algodão,
nas docas, na estiva, nas Estradas de Ferro Leste Brasileiros e Central do Rio
Grande do Norte, nos estaleiros, nos sapateiros, nos pescadores, na Companhia
de Energia Elétrica e na Companhia de Bondes. Além disso, depois do ingresso do
Quintino e de Giocondo, mais 12 cabos e 5 sargentos, passamos a ter um trabalho
organizado e dirigido politicamente dentro do quartel. Os militares passaram a
receber orientação política marxista-leninista e a ter vida partidária”.
No dia 23 de Novembro começou o Levante em Natal, os
soldados, cabos e sargentos junto com os trabalhadores organizados pelo Partido
e vários que aderiram durante o movimento se levantaram e derrubaram o governo
tomando o controle de Natal, instaurando um Governo Popular Revolucionário. À
frente desse governo estava o sargento Quintino Clementino de Barros, da
defesa; o funcionário público Lauro Cortes do Lago, do interior; o estudante
João Galvão, da Viação (transportes); e o funcionário dos Correios e Telégrafos
José Macedo, das Finanças e claro, o sapateiro José Praxedes encarregado do
aprovisionamento.
“Depois da reunião, eles me escolheram para fazer a
proclamação do governo. Fomos para a Praça do Mercado, em frente ao quartel do
21º Batalhão Central e ali mesmo, na porta do quartel, eu subi na murada e li a
proclamação do Governo Popular Revolucionário. O povo estava todo na praça e,
depois da proclamação, saudou o novo governo com gritos de ‘Viva a Revolução’,
‘Viva o Governo Popular Revolucionário’, ‘Viva Prestes’. Foi uma verdadeira
festa. Durante a reunião que definiu o governo nós resolvemos fazer umas faixas
com os dizeres: ‘Pão, Terra e Liberdade. Todo apoio ao Cavaleiro da Esperança’.
Mas não houve tempo e a coisa foi feita sem faixa mesmo” – conta Praxedes.
Assim era declarado o primeiro governo popular revolucionário do Brasil, José
Praxedes também detalha as primeiras medidas deste novo governo:
“Mandamos desligar todos os faróis. O Batipari, ao
norte, na fronteira com a Paraíba; o dos Três Reis Magos, na entrada do porto
de Natal; e o do Cabo de São Roque, o Olhos D’Água e o Touros. Com isso nós
evitamos a possibilidade de um ataque pelo mar. Com os faróis desligados nenhum
navio teria condições de se aproximar de Natal” – explica Praxedes. Ao mesmo
tempo, a Junta determinou que as duas corvetas mexicanas que estavam ancoradas
no porto não poderiam sair e mandou uma tropa vigiar o cais. “Não permitimos
que os navios mexicanos saíssem porque eles poderiam alertar as autoridades e
também porque nós poderíamos usá-los em caso de necessidade”.
O novo Governo também tratou de lançar um comunicado
pedindo para todo o povo em armas que “respeitem os adversários, na sua pessoa
e na propriedade, não cometendo excessos de qualquer natureza, guardando às famílias
o máximo respeito, procurando garantir os comerciantes, em especial os
pequenos. Os responsáveis por depredações ou agressões responderão por elas
perante o órgão competente do Comitê. Qualquer fato que contrarie essa
recomendação será interpretado como ato de rebeldia e desacato ao próprio
Comitê, ao qual deverão ser trazidas quaisquer reclamações dos prejudicados,
para as devidas providências. Nossa estrondosa vitória não justifica vinganças
indignas na grandeza do ideal que a inspirou”.
Desmentindo a versão de que houveram grandes desordens
e depredações, Praxedes relata:
“Desde a manhã do dia 24 [de novembro] que os
integralistas começaram a espalhar boatos alarmistas pela cidade. O povo, sem
nenhuma determinação nossa, invadiu a sede deles e arrebentou tudo. As paredes
foram pintadas com ofensas a Plínio Salgado, as cadeiras quebradas, a
escrivaninha do presidente deles também foi toda pintada. Enfim, fizeram uma
esculhambação danada. Mas foi só esse incidente mais grave que ocorreu. As
nossas patrulhas ficaram o tempo todo nas ruas para garantir a ordem e o
respeito às pessoas. No geral as pessoas entenderam nossas determinações. Não
houve nenhum abuso como alguns tentam espalhar por aí”.
Sobre à questão dos chamados saques que os
historiadores burgueses insistem em falar:
“O assédio do povo faminto era muito grande e então
eu, como secretário de aprovisionamento, determinei que nossa gente fosse ao
armazém de um português chamado Manoel Machado e requisitasse mantimentos para
o Palácio do Governo. E isso foi feito. Os mantimentos foram recolhidos e
distribuídos ao povo lá no Palácio mesmo. O povo fez fila e cada pessoa levava
uma ração, com um quilo de arroz, feijão, farinha, açúcar e carne. Não me
lembro de ter visto ou sido informado de qualquer saque a estabelecimentos
comerciais. Se houve, não tive notícia na época. Só sei dessa requisição de
mantimentos ao armazém do Machado que foi feita oficialmente pela Junta de
Governo”. Alguns historiadores garantem, inclusive, que a Junta tomou providências
para manter o comércio aberto e confirmam a versão de Praxedes de que foram
colocadas patrulhas nas ruas para manter a ordem.
As duas medidas mais populares do novo governo sem
dúvida foram a distribuição de alimentos gratuitos ao povo e o decreto da reforma
agrária e a distribuição de terras improdutivas aos camponeses; assim como a
diminuição do preço das passagens dos bondes, de cinquenta para vinte réis. Mas
longe de ser um apologista barato do Levante Popular de 1935, Praxedes tem uma
reflexão autocrítica da questão da participação da massa no Levante: "O
povo mesmo não participou diretamente da insurreição. Só os militares do
Partido. Se nós tivéssemos tido mais tempo para consolidar o governo, talvez,
essa situação se invertesse. Mas nós não tivemos tempo nem mesmo para fazer
manifestações de massa, comícios e outras atividades de propaganda em defesa do
novo governo”.
O novo Governo Popular Revolucionário tinha um plano
de mover tropas para o interior e expandir a revolução para outros estados, segundo
Praxedes “A maior parte desse plano deu certo” – conta Praxedes. “Nossos
homens, na maioria dessas cidades, ocuparam as prefeituras, depuseram os
prefeitos e se apoderaram do dinheiro que havia. Esse dinheiro era
imediatamente remetido para o Governo em Natal. Tudo isso foi feito sem nenhuma
resistência. Todas essas cidades ficaram nas nossas mãos. O curioso é que
nenhum dos grandes proprietários, dos latifundiários, se mexeu. O único que
resistiu foi o Dinarte Mariz”.
Após a derrota dos revolucionários na Serra do Doutor
as tropas da reação foram avançando pelo Rio Grande do Norte e derrotando os
revolucionários que não tinham força para suportar ataques de tal magnitude,
além das atitudes liquidacionistas de Giocondo Dias que fugiu da luta e libertou
os agentes da reação presos. Diante da impossibilidade de continuar a luta a
grande maioria dos comunistas foram presos ou mortos, já outros, como Praxedes,
conseguiram fugir à pé.
Praxedes inicia sua fuga, levando consigo, além de
algum dinheiro, um 38 cano longo e munição. Ele saiu a pé, alta madrugada,
atravessando a ponte da Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte sobre o
rio Potengi, em direção a Pajuçara, onde moravam seus familiares. “Cheguei lá
quando o dia já estava amanhecendo e procurei um primo meu chamado João. É
claro que eu não poderia ficar morando na casa dele porque chamaria muito a
atenção. Fiquei escondido no meio do mato, morando numa barraca pintada de
verde para confundir com as folhagens da mata. Dormia quase que o tempo todo,
me alimentava de frutas e da comida que meu primo me levava, escondido. Fiquei
nessa situação de 27 de novembro até fins de maio de 1936, escondido no meio do
mato como um bicho”.
Mesmo diante dessas dificuldades, Praxedes não
abandonou a militância comunista e dentro de poucos dias retomou contato com o
Partido, soube que o Comitê Central gostaria de vê-lo em Recife e iniciou uma
viagem a pé, de trem e ônibus onde percorreria Rio Grande do Norte, Paraíba e
Pernambuco.
“Quem estava lá me esperando era o próprio ‘Gaguinho’
que imediatamente me leva ao Comitê Central, na época o Bangu, o Heitor
Guimarães, que usava o codinome de Martins e um português, que era mestre de
bordo, cujo nome não me lembro. Nessa reunião fiz um relato detalhado de toda a
insurreição. Tim-tim por tim-tim, sem acrescentar, nem esconder nada. Contei
tudo exatamente como havia acontecido. Os três ficaram impressionados com o meu
relato, principalmente com a atitude tomada pelo Giocondo e me disseram que
esse comportamento dele era injustificado. Eles disseram que Giocondo seria
expulso do partido”
Após essa reunião começa a longa clandestinidade de
José Praxedes, que duraria praticamente o resto de sua vida.
49 ANOS DE
CLANDESTINIDADE
Movido para Maceió para ajudar na reorganização do
Partido, fica na capital alagoana durante um ano quando é mandado para
Salvador, se tornando definitivamente Eduardo Pereira da Silva. Continua
operário e militante, e mesmo com a conquista da legalidade, se mantém
clandestino por não acreditar na anistia do governo fascista de Vargas.
Continua militando ativamente no P.C.B. até o golpe de 1964: “Minha casa ficava
perto do Sindicato das Docas, que foi invadido pela polícia. Quando vejo aquilo
decido acabar com todos os meus livros, jornais e papéis, com medo de ser
preso”.
Acredita-se que houveram divergências entre Praxedes e
a direção que usurpa o Partido através da sigla de PCBrasileiro, pois
misteriosamente a camarilha revisionista “esqueceu” sua participação no Levante
de 1935, como coloca Giocondo Dias, em entrevista dada a José Paulo Netto, onde
“não se recorda” do nome de Praxedes. Mais tarde admitiu que o fez
propositalmente, historiadores acreditam que isso ocorreu por Praxedes estar
“envolvido com o PCdoB”. Os detalhes não são claros do que Praxedes fez após se
afastar do PCBrasileiro, mas é bem provável que tenha sim militado junto ao
Partido Comunista do Brasil na Bahia durante a ditadura, não tão ativamente
devido a idade avançada e problemas de saúde mas é certo que mantinha contato
com o Partido pois apenas militantes do PCdoB sabiam e comentavam que o mesmo
continuava vivo e atuante na clandestinidade. Dificilmente saberemos com
absoluta certeza pois, após ser descoberto por um jornalista depois de quase 50
anos clandestino e gravar um longo depoimento que se transformou em livro (do
qual retiramos todas as citações suas colocadas aqui), José Praxedes faleceu em
sua pequena casa no interior da Bahia em 1984.
Sob seu túmulo, foi colocado uma coroa de flores com
os dizeres “A José Praxedes de Andrade, companheiro de lutas, as derradeiras
homenagens do Partido Comunista do Brasil”.
José Praxedes foi um dos que dedicaram suas vidas à
causa do comunismo no Brasil. Nas palavras do jornalista Moacyr de Oliveira
Filho, que entrevistou José, “durante todos esses anos, Praxedes sempre se
orgulhou de uma única coisa: da sua condição de comunista. Nunca renegou sua
ideologia, nem tampouco o seu Partido, embora a partir da década de 60 dele
tenha se afastado por razões de saúde, de idade e, também, de política.
Praxedes, afastado da militância partidária, não conseguia entender e captar
perfeitamente as divergências que começavam a se instalar no movimento
comunista brasileiro. Para ele, o Partido Comunista do Brasil era um só. O
mesmo que em 1935 pegou em armas contra a ditadura de Vargas. Durante todos
esses anos, José Praxedes de Andrade, mesmo reconhecendo os erros cometidos,
nunca renegou a experiência da Insurreição de 1935. Orgulhava-se de ter
participado desse histórico movimento e ainda sonhava com o dia em que o
socialismo fosse triunfante no Brasil”.